quarta-feira, 27 de abril de 2016

Organizações divulgam Carta Aberta sobre assassinatos de indígenas no Maranhão pedem fim do genocídio


Em carta aberta, organizações pastorais, comunidades indígenas, quilombolas e movimentos sociais relembram a passagem de um ano desde o assassinato de Eusébio Ka'apor e denunciam os recentes homicídios de quatro indígenas Guajajara da Terra Indígena Arariboia, ocorridos entre os dias 26 de março e 22 de abril. Confira abaixo, na íntegra:

Carta Aberta às autoridades e à sociedade brasileira: Parem o genocídio indígena!

É com grande pesar que lembramos neste 26 de abril um ano do assassinato de Eusébio Ka’apor. Eusébio foi morto por defender seu povo. Os governos até hoje não elucidaram o crime, embora as suspeitas recaiam sobre madeireiros denunciados pelos Ka’apor e demais povos da floresta que, frente ao descaso por parte do Estado, resolveram, de si mesmos, defender seus territórios e a natureza.

Os assassinatos prosseguem. Entre março e abril deste ano, os crimes vêm aumentando em número. Em março, Aponuyre Guajajara, 16 anos, foi morto com vários tiros. O mês de abril está marcado com o sangue indígena: no dia 07, foi assassinado, com três disparos de arma de fogo, Fernando Gamela, 22 anos, na comunidade Taquaritiua, município de Viana. No município de Amarante do Maranhão, no dia
11, foi assassinado Genésio Guajajara; no dia 19, “Dia do Índio” foi assassinado Isaias Guajajara e, no dia 22, Dia da Terra, foi assassinado Assis Guajajara: o seu corpo foi encontrado, sem vida, num riacho com marcas de pauladas. Em todos os casos há dois aspectos semelhantes: 1) o requinte de crueldade – matam não apenas pessoas: na verdade, querem “dar uma lição aos povos”; 2) o silêncio das autoridades públicas.

Os povos também vêm sendo dizimados e ameaçados. É o caso, por exemplo, do Povo Gamela, que luta pelo reconhecimento do seu Território na Baixada Maranhense (os Gamela recebem acenos governamentais e pouca ação, enquanto fazendeiros fazem ameaças à luz do dia).

Não dá para naturalizar esses crimes. Não dá para ser conivente. Não dá para não denunciar. Não dá para não se indignar. Apenas o Governo do Maranhão e o Governo Federal agem como se tudo estivesse normal, contribuindo para uma segunda morte destas vítimas, através de sua invisibilização (e também com um terceiro sepultamento, pois são recorrentes os casos de difamação dos assassinados nos municípios onde estão seus territórios).

A sociedade não pode ter atitude igual. Cobremos ação. Cobremos o fim dos discursos dóceis que apenas tentam nos silenciar enquanto os assassinos, muitos deles políticos ou seus apoiadores, continuam soltos, perseguindo, matando, invadindo aldeias, queimando as terras sem que nada seja feito. Dessa forma, o “diálogo”, anunciado pelo Governo do Maranhão, transforma-se numa tentativa de brecar a reação, enquanto os povos acumulam vítimas, enquanto enterram seus mortos, enquanto as terras ficam estéreis por incêndios criminosos. Até quando isso continuará?

Além de denunciarmos os assassinos e a cumplicidade do Estado, denunciamos o preconceito de que os povos indígenas têm sido vítimas, preconceito estimulado pelos assassinos nas cidades próximas aos territórios. Dessa forma, os indígenas circulam amedrontados em cidades como Amarante do Maranhão, em que até o atendimento médico é feito de forma visivelmente constrangedora. Madeireiros, grileiros, invasores de terras indígenas fazem uso do discurso do desenvolvimento, amplamente amparado pelo Estado, para os colocar como empecilhos, quando na verdade a presença dos povos tradicionais, em vez de obstáculos, significa a defesa contra a destruição avassaladora a que querem submeter florestas, territórios, rios e gente. Continuaremos firmes na defesa de nossa existência, de nossa História, de nossos rios, de nossos rituais, do direito a existir sem se esconder, sem sofrer opressão por causa disso, e mais uma vez responsabilizamos os governos maranhense e brasileiro por contribuir, seja por omissão, seja pela defesa de um discurso deturpado, que encoraja nossos agressores, com essa visão que tanto nos faz sofrer e que estimula a ameaça aos povos indígenas.

Denunciamos os políticos que se aliam a esse projeto assassino, e, sob pretexto de defender pequenos agricultores, atacam os povos indígenas e os quilombolas, enquanto, na verdade, defendem os interesses do agronegócio que financia suas campanhas eleitorais. Assim foi que, como exemplo desse tipo de ação dissimulada, o deputado Weverton Rocha, do PDT/MA, aliado do Governador Flávio Dino, requereu audiência na Câmara dos Deputados, sem a participação dos povos indígenas, para discutir a demarcação de terras no Maranhão, o que é um imperativo da Constituição Federal. Para atacar os povos indígenas, os cúmplices desses crimes dão as mãos: nessa audiência, membros da oligarquia Sarney no Congresso apoiaram os questionamentos e os dados falaciosos levantados pelo deputado do grupo ao qual dizem se opor. Em suas falas, o deputado Weverton Rocha sempre dá um jeito de distorcer a própria História: para ele, são as terras indígenas que avançam contra o que considera “civilização”, e não o contrário! Essa é uma das justificativas (junto com a falácia do desenvolvimento, que encobre crimes ambientais) para os assassinatos e para as atitudes preconceituosas contra indígenas nas cidades próximas aos territórios. É também destaque a atuação do deputado quando da discussão do maior ataque aos povos indígenas do Brasil intentado pela via parlamentar, que é a tentativa de aprovação da Proposta de Emenda Constitucional Número 215/2000 pela Bancada Ruralista.

A PEC 215 rasga a Constituição de 1988 e intensifica  o genocídio indígena, uma vez que pode significar a revisão de terras já demarcadas e fazer com que o Estado Brasileiro paralise completamente os processos de demarcação ordenados no Ato das Disposições Constitucionais e Transitórias do Texto de 1988: se aprovada, as demarcações, em vez de serem cumpridas como manda a Constituição Federal, serão “discutidas” pelos parlamentares, que, obviamente, atendendo aos seus próprios interesses, não permitirão mais qualquer demarcação de terra tradicional ou reserva ambiental no Brasil. É um risco que toda a sociedade corre e ela deve estar ciente disso. A PEC 215 põe em perigo a própria existência dos povos tradicionais e originários, que veem seus territórios não como mero pedaço de chão, mas como extensão de suas vidas.

Além de silenciar ou pouco agir ante tanta violência, o Estado ainda se omite em relação à assistência aos povos indígenas. Como não lembrar o Povo Krenyê, abandonado à própria sorte, que até para ter acesso à agua para beber é preciso gritar por socorro? Ou os incêndios nas terras Awá, até hoje suspeitos de terem sido feitos por madeireiros criminosos, e cujas apurações nunca apontaram resultados? Os incêndios dizimaram as caças, deixaram as terras inférteis e os indígenas seguem sem assistência, sem sementes, sem um aceno que garanta sobrevivência. Tudo isso compromete a reprodução social do povo, que está sem comida, vivendo numa terra seca, em que suas festividades já não podem ser realizadas, porque lhes falta a caça, que morreu no fogo. Ressalte-se ante esse quadro a completa falta de uma política pública efetiva para os povos indígenas, que atenda aos povos sem subjugá-los, a omissão e desestruturação da Funai.

Denunciamos que neste dia 26 de abril, quando completa um ano do assassinato de Eusébio Ka’apor, depois de ouvirmos do secretário de Segurança do Estado do Maranhão que uma séria e rigorosa investigação seria feita e que em breve se veriam os resultados, isso dito ainda em setembro do ano passado, agora a Polícia Civil do Estado, de forma omissa e incompetente, repassa o inquérito para a Polícia Federal, que, por sua vez, espera a justiça se pronunciar sobre a quem cabe a competência para investigar o caso. Assim, a morte de Eusébio segue sem qualquer punição ou mesmo apuração. Enquanto isso, a insegurança, da qual o Estado é sabedor, continua ameaçando os Povos do Maranhão: perseguição e monitoramento dos indígenas por fazendeiros e madeireiros é a rotina de tensão dos povos no interior do Estado, submetidos a todas as formas de violência: simbólica, física, cultural. Enquanto isso, os ditos civilizados silenciam e se limitam a colocar sobre as cabeças dos filhos um cocar de papel no “Dia do Índio” – dia em que mais um dos nossos foi assassinado. É hora de romper com o silêncio e com a hipocrisia!

Denunciamos, mais uma vez, esse Estado omisso, autoritário, pseudodemocrático, seja na instância estadual, seja na federal. No Maranhão, não tem como não questionarmos a atuação da Secretaria Estadual de Direitos Humanos e Participação Popular do Governo Flávio Dino (Sedihpop), que recentemente se limitou a informar não haver qualquer diligência, no âmbito do Estado, sobre o assassinato de Eusébio Ka’apor; sobre os tiros aos ka’apor por madeireiros no dia 20 de dezembro de 2015; sobre a invasão da aldeia Turizinho por cerca de 60 madeireiros no dia 21 de dezembro de 2015; nem sobre o sequestro da adolescente Irauna Ka’apor, há um mês atrás.

O papel da Secretaria, aliás, muito tem, infelizmente, servido aos agressores dos indígenas, dos quilombolas, dos camponeses, dos ambientalistas, dos defensores dos direitos humanos ameaçados: sob a falácia do diálogo, nada mais é feito, nada é encaminhado de forma efetiva. Pelo menos não do lado de cá: os agressores, como já demonstramos, contam com bancadas parlamentares, secretários de estado, ministros de Estado, dinheiro dos bancos de financiamento, com toda uma estrutura por parte do Estado – tanto o Brasileiro quanto o estado do Maranhão – enquanto aos demais é dada a ilusão do diálogo: nossos representantes são recebidos por um dos órgãos que foi anunciado como sendo dos mais próximos ao governador, mas nada é feito. Isso faz com que a Secretaria que deveria encaminhar estas demandas e denúncias funcione como uma espécie de “colchão de amortecimento” das questões sociais. Não é esse o papel que esperamos de um órgão – e de agentes – de tamanha importância. Com este alerta, apelamos por um posicionamento firme deste órgão, e exigimos, dessa forma, e mais uma vez, respostas efetivas a estas situações!

Do lado de cá, seguirão não apenas as denúncias, mas a batalha por sobrevivência e pelo Bem Viver! Dessa forma, fiquem sabendo: as sementes que vocês plantaram ou ajudaram a plantar, regando-as com o sangue dos mártires, dará fruto. Fruto que unificará nossas lutas contra a carnificina de indígenas, de quilombolas, de camponeses, de ambientalistas, de militantes dos direitos humanos, de militantes sociais, de nossa gente, no campo e na cidade, nas periferias, nos locais onde aparecem apenas as promessas, das quais cansamos. Nossa união seguirá e se ampliará, por democracia, pelos povos tradicionais e originários, por todos aqueles que estão cansados de serem ouvidos, mas nunca atendidos. Que estão cansados de verem os seus tombar, que estão aqui a denunciar e a conclamar a sociedade brasileira que tome posição contra esse genocídio, contra esses crimes, contra esse preconceito, contra essa invisibilização que, de nossa parte, nunca foi tolerada, e que agora o será menos ainda, avisamos. Que a sociedade, ao contrário dos governantes, não seja omissa e cúmplice desses assassinatos. Que não lave suas mãos. E que não as tenha sujas de sangue.

Comissão Pastoral da Terra – CPT/MA
Conselho Indigenista Missionário – CIMI/MA
Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente – GEDMMA/UFMA
Jornal Vias de Fato
Movimento Quilombola do Maranhão – MOQUIBOM
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias – NERA/UFMA
Pastorais Sociais – CNBB Nordeste V
Povo Gamela

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