No dia 23 de maio, foi
realizado no Memorial do Ministério Público Federal, em Brasília, o “Ato
denúncia por direitos e contra a violência no campo”. Através de depoimentos de
indígenas, quilombolas, pescadores e trabalhadores rurais, a atividade
denunciou o aumento da violência contra os povos do campo recentemente.
(Cristiane Passos - CPT e Tiago Miotto - CIMI
fotos: Guilherme Cavalli - CIMI)
O
ato foi realizado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em parceria
com movimentos e organizações sociais que, diante do acirramento dos casos de
conflitos e principalmente de violência no campo, reivindicaram uma ação
conjunta de denúncia e de articulação de ações que tentem desmobilizar tamanha
violência.
Casos
como a chacina de Colniza, no Mato Grosso, que vitimou nove trabalhadores
rurais, o ataque aos indígenas Gamela, no Maranhão, em que alguns tiveram mãos
decepadas, o assassinato de trabalhadores e trabalhadoras no Pará e em
Rondônia, se seguiram em curto espaço de tempo e chamaram a atenção para o
aumento da violência contra esses povos.
De
acordo com os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), apresentados na
ocasião pela Jeane Bellini, da coordenação nacional da Pastoral, em 2016 foram
registrados 61 assassinatos, o dobro da média de casos registrados nos últimos
10 anos. Em 2017 já foram 26 assassinatos registrados e alguns casos ainda sob investigação
quanto a sua motivação. Da mesma forma, aumentaram as tentativas de
assassinato, em 2016 foram 25% a mais que no ano anterior, e as prisões, que
tiveram um aumento de 185%, mostram claramente a estratégia de criminalização
dos povos que lutam pelos seus direitos, terra e território no Brasil.
Jeane
apresentou, também, os dados de assassinatos e julgamentos registrados pela CPT
desde 1985. Nesses 31 anos, foram 1.834 assassinatos em conflitos no campo, em
que somente 112 casos foram julgados, condenando 31 mandantes e 92 executores
apenas. A coordenadora avalia que a impunidade continua sendo a mantenedora da
violência no campo. A certeza de que não serão punidos motiva mais agentes do
latifúndio a exercerem a violência como ferramenta de expropriação territorial
e exploração desenfreada de recursos naturais. “O Estado não é apenas conivente
ou omisso, mas também ativo na violência”, analisou ela.
“Nos
últimos três anos, percebemos um aumento preocupante nos números de violência
no campo, e por isso pedimos o apoio do CNDH para dar visibilidade ao que está
acontecendo”, explicou Jeane. A partir da provocação e da continuidade da
violência, o CNDH convidou organizações e instituições para debater o tema.
“Precisávamos
denunciar e articular ações urgentes que envolvessem as entidades de direitos
humanos, organizações sociais e o que restou da República para fazer algo diante
de toda essa violência. Os órgãos competentes do governo precisam ver o que
fazer para dar respostas imediatas diante desse processo generalizado de
violência no campo”, disse Darci Frigo, presidente do CNDH.
A
professora de Direito da Universidade de Brasília (UNB), Beatriz Vargas reforçou
a importância desse trabalho de registro e enfatizou que a realidade é ainda
mais dura do que os números da CPT mostram. “Existe um tipo de violência que é
oculto, que não aparece no relatório. Manifesto aqui minha expectativa pessoal
e cidadã de que essas ações de denúncia consigam de fato fortalecer a pauta de
uma agenda de reversão dessa situação que é histórica no Brasil, e que vem
aparecendo na cena pública de forma mais intensa ultimamente”, avaliou Beatriz.
A
professora mostrou preocupação, ainda, com o aumento dos dados de prisões. “Estamos
em um momento que começamos a ver na cena da chamada criminalização uma
novidade, que se esboçou na ação penal instaurada pelo Ministério Público de
Goiás, em que relacionam ações de luta de integrantes do MST a crimes graves. A
grande novidade e preocupação nessa ação é que o MST passa a ser descrito
diretamente como organização criminosa. Precisamos estar atentos para que esse
precedente não se alastre na justiça brasileira”.
Os números na prática:
depoimentos das vítimas da violência no campo
Fátima Barros, do Quilombo Ilha de São Vicente, no
Tocantins, e da Associação Nacional dos Quilombos (ANQ), afirma que a luta dos
quilombolas sempre foi constante, mas a violência se ampliou muito nos últimos
anos.
“Agora,
a gente sente que é como se alguém tivesse licença para nos caçar e nos matar.
As violências não acontecem quando a gente se identifica como quilombola.
Quando a gente diz isso, muitos até acham bonito. Mas quando digo que quero o
território, que é meu por direito, aí a gente passa a incomodar, ser ameaçados,
e os programas de proteção protegem cada vez menos. Regularizar nossos
territórios é uma forma de amenizar as violências, mas não de cessá-las, porque
a pressão sobre eles continua”, afirma a quilombola.
Para
Fátima, a sociedade brasileira nunca reconheceu e nem se sente culpada pelos
400 anos de escravidão no Brasil. “Mas nós vamos seguir lutando pelos nossos
territórios, porque é assim que estamos protegendo também o Brasil. Somos
guardiões desses espaços, desses territórios. Estamos aqui e sempre vamos
denunciar, e o mundo vai ter que ouvir sim a voz dos marginalizados. Não nos
calaremos”.
Citando
o caso do quilombo Rio dos Macacos, na Bahia, a quilombola Rosimeire dos Santos afirmou
que em muitos casos o Estado, mais do que omisso, é o agente direto da
violência. “A Marinha quer colocar cercas na água para nos destruir”. Ela se
refere ao fato de que a Marinha do Brasil considera o território de Rio dos
Macacos =área de defesa nacional, e pretende impedir o acesso dos quilombolas
ao rio, de onde tiram seu sustento, por meio de um muro. “Se fecharem o acesso,
logo vão começar a sair caixões de dentro da nossa comunidade, porque não vamos
aceitar”, antevê a quilombola.
Cao Gamela colocou sua preocupação com o que ainda
pode vir a acontecer com seu povo. “Temos sofrido ameaças constantes. Essa abertura
do governo deu possibilidade para ação criminosa. Eles falam que nós, que
buscamos nosso território, é que somos criminosos. Nos últimos dias, fomos
ameaçados por drones. A polícia nos diz que esses instrumentos não são da
polícia, mas nenhuma ação está sendo tomada e o povo está sendo amedrontado,
porque não sabe o que pode acontecer. Disseram que é para a ANAC que tenho que
reclamar. Como eu, que estou lá na comunidade, vou saber como falar com a ANAC?”questiona
o Gamela.
Cao
contou que os Krikati, no Maranhão, também vêm sofrendo ameaças. “A gente já não sabe mais para quem reclamar.
Na reunião que teve no dia do massacre, foi lida uma lista de cinco pessoas que
tem que ser mortas lá em Viana. Lá tem os fazendeiros, mas tem também o patrão,
o deputado federal Aluísio Mendes [PTN-MA]. Se algum de nós morrer, nós sabemos
que a culpa vai ser dele”.
Também
do povo Gamela, Gracinalva Costa reforçou o ambiente de insegurança em que
vivem os indígenas no Maranhão. “O massacre foi planejado com antecedência.
Antes achavam que nós éramos os índios bonzinhos. A partir do momento que fomos
cobrar nossos direitos, quiseram nos matar. Todos nossos direitos foram
negados. Nós precisamos de nossa terra, sem o nosso território não temos nada.
Continua a mesma ameaça, a partir do momento que a polícia sair de lá, índio
vai morrer. Estamos com medo, mas com raiva também. Estamos cansados de correr
atrás dos nossos direitos”.
Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe, liderança indígena histórica da Bahia, tem 71 anos e foi incluído na lista de
indiciamentos da CPI da Funai e do Incra. “É com muita raiva que
vemos uma
palhaçada contra as principais lideranças que trabalham com respeito com as
suas comunidades e com o compromisso de recuperar os territórios que foram
roubados. Nasci e me criei na aldeia, me tornei liderança para articular o povo
que foi expulso da nossa terra na década de 1970”, relembra.
“De
1975 até hoje, nenhum indígena pediu minha saída da liderança. Hoje estou
incluído numa CPI, que eu nem sei o que é. Talvez isso tenha acontecido porque,
depois de esperar 30 anos pela Justiça, resolvemos retomar o nosso território. A
violência continua contra todas as comunidades que estão lutando pelos seus
territórios, que lutam porque até hoje não foi cumprida a lei. Isso é
vergonhoso. São pessoas que muitas vezes não sabem seus direitos, e quando
alguém conhece e começa a lutar, é crucificado”, afirmou Nailton.
Luís Batista, trabalhador rural e integrante do Movimento
dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), ficou preso em Rio
Verde, Goiás, por mais de um ano. Solto recentemente, ele avalia que sua prisão
foi política.
“Estou
com 47 anos e nunca vi na minha vida lutar pela terra ser crime. Eu nunca
sentei numa cadeira de escola para estudar, e não tenho vergonha de dizer isso,
e nem de dizer que fui preso, porque foi uma perseguição. Teria vergonha de
falar se fosse um criminoso, mas na minha vida aprendi a trabalhar na terra.
Sou pai de três filhos e avô de dois netos. Eu, com 46 anos – completei 47
dentro da prisão – nunca tinha tido meu nome numa delegacia. Talvez nos fóruns,
mas defendendo os direitos do povo. Não é uma prisão que vai me calar a boca.
Lutar pela terra é um direito nosso e vamos continuar lutando”.
Clóvis da Silva, do
Movimento dos Pescadores e
Pescadoras Artesanais (MPP) do Pará,
ressaltou a pressão de projetos de infraestrutura sobre as comunidades
tradicionais, falando sobre o caso de sua comunidade, pressionada pela
construção de um porto de subsidiárias da multinacional Suzano. O pescador
ressaltou que mesmo a energia que é vendida como “limpa”, caso de hidrelétricas
e parques eólicos, é obtida por meio de projetos que desrespeitam os povos e
comunidades tradicionais. “Tudo que acontece nos continentes reflete nas
comunidades pesqueiras, porque tudo que se produz no país escoa pelos portos”,
afirma o pescador, lembrando que a expansão do agronegócio também gera pressão
sobre os territórios pesqueiros. “Nós estamos sendo ameaçados, recebendo
ameaças de morte. Não dá para baixar a cabeça”.
Carlos Augusto, da CONTAG do Pará, mostrou preocupação
com a criminalização dos lutadores e lutadoras sociais, bem como com a
grilagem, típica no Pará, que mantem a tensão no campo, resultando muitas vezes
em violência.
“Existe
uma visão muito clara de criminalização dos movimentos sociais,um Estado
conservador que tem um preconceito contra a luta pela terra em nível nacional.
É evidente isso quando a gente olha as leis que esse congresso está aprovando”,
afirma, citando os projetos do governo federal e da bancada ruralista que visam
a reconcentração fundiária, a legalização da compra de terras no Brasil por
estrangeiros, entre outros.
Para
ele, a ação do latifúndio é fortalecida pela falta de segurança pública. “Existe
uma concepção perversa e conservadora baseada na pecuarização, numa matriz
energética que destrói o ambiente, acaba com as terras indígenas e quilombolas,
uma matriz minerária que vai destruindo milhares e milhares de trabalhadores e
trabalhadoras. O Pará sempre foi um estado de lista de marcados para morrer,
com preço de homens e mulheres marcados por se contrapor ao agronegócio, ao
modelo de desenvolvimento e aos governos que foram eleitos em nome do
latifúndio”.
Giselda Pereira, seringueira de Rondônia, denunciou que
“os que fizeram a chacina em Colniza são os mesmos que querem nos matar,
invadir nossas reservas, nos destruir. Só em Rondônia, já foram 10 mortes por
conflito agrário só neste ano. As pessoas que contrataram gente para matar
aqueles nove são as mesmas que nos ameaçam. Pedimos que olhem para as unidades
de conservação de Rondônia e parem os conflitos. Sou seringueira, não lutamos
por terra, lutamos por florestas. Assim como nossos irmãos indígenas e
quilombolas, é graças aos povos que sobrevivem nelas que elas ainda existem.
Mas, infelizmente, se continuar assim elas vão deixar de existir e os povos que
delas vivem serão dizimados”.
Alberto Terena, do
Conselho Terena e da APIB, também denunciou a gravidade da CPI da Funai e o
indiciamento de indígenas como resultado dela. “Estamos vendo legalizar esta
questão de tirar nosso direito, de matar o índio e isso está legalizado. Foi na
semana passada aprovado o relatório da CPI da Funai, o Nailton e outros 14
indígenas estão sendo incriminados por lutar por seus direitos. Por isso eu
também já fui preso. Dentro do Congresso hoje, tem a bancada ruralista, e ela é
maioria. Onde que o nosso direito vai ser respeitado por essa bancada?”,
questiona.
“Os
que nos defendiam não tinham direito de falar, e a sala era cercada para que
nenhum representante indígena pudesse entrar. Quando você olha o relatório, são
os índios que eles estão tentando incriminar, chamando o cacique Babau de
bandido. Isso é gravíssimo. No Brasil, buscar o que diz a Constituição do nosso
país se tornou crime, porque o governo não quer reconhecer e os grandes
proprietários de terra que estão no Congresso dizendo ‘índio não precisa de
terra’. Por isso estamos buscando fazer a denúncia internacional. Temos que nos
juntar para que nossa caminhada se fortaleça a cada dia e não tenhamos que
estar enterrando nossos parentes”, completou o Terena.
Denúncia e compromisso
Representantes
de órgãos do governo, como Ministério Público Federal, Comissões de Direitos
Humanos e Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, OAB Nacional, Conselho
Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, Comissão de
Direitos Humanos do Senado, entre outros, ouviram os depoimentos e as diversas
denúncias de violência.
Após
a leitura da Carta Compromisso do Ato, as autoridades assumiram o compromisso
de levar o documento para suas instâncias de ação e cobrar desses órgãos que
também assumam a responsabilidade sobre essas denúncias, exigindo ações
imediatas do Estado para frear a violência no campo.
Para
Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão (MPF), a construção
histórica do nosso país sempre deixou os povos originários de lado e os atingiu
com violência para manter seu processo colonialista de consolidação social.
“Temos
que lembrar a construção da nossa história, da falta de alteridade em relação
aos povos originários, da escravidão e tantas outras mazelas, bem como a
divisão das sesmarias. Parece que agora estamos voltando ao início da nossa
história. Tivemos um ministro do Trabalho que se recusou a publicar a lista
suja do trabalho escravo”.
Para
a procuradora, há uma ofensiva para que voltemos a ser uma sociedade de poucos
homens, brancos e ociosos. “Precisamos combater a ideia de que uma pessoa seria
criminosa por lutar”.
Duprat
também ressaltou a preocupação com a impunidade dos agressores e a atuação cada
vez mais intensa de milícias armadas. “A CPT em Mato Grosso denunciou que de
todos os assassinatos que tiveram no estado, não houve nenhuma punição. No Mato
Grosso do Sul conseguimos somente através de uma força tarefa ter alguma
punição em relação às constantes violências contra os Guarani e Kaiowá e os Terena.
Queremos, também, assumir um compromisso de enfrentamento às milícias armadas.
Sabemos que em Rondônia e no Pará o número de casos tem aumentado muito”.
Deborah Duprat (vídeo: Guilherme Cavalli)
A
absurda atuação da bancada ruralista na CPI da Funai e do Incra também causa preocupação
à procuradora que enfatizou que precisamos cobrar esses agentes do agronegócio
dos seus crimes contra os povos do campo. O próprio deputado Nilson Leitão
(PSDB – MT), relator da CPI, responde a inquérito que segue em segredo de
justiça no STF por ter tido uma ligação telefônica interceptada quando da
demarcação da TI Marãiwatsédé, conclamando as pessoas para invadirem a área
indígena e impedirem a demarcação. “A legislação está sendo feita para a
violência aumentar, e os latifundiários estão se sentindo muito à vontade”,
finalizou.
O
subprocurador da República e coordenador da Sexta Câmara do MPF, especializada
em direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, anunciou que o
órgão está organizando um mecanismo de alerta rápido para prevenção de
massacres e violações de direitos.
“Mesmo
nas situações de ameaça, há algumas que podem ser consideradas ameaças mais
agravadas, e essas que podem se converter em morte. O que é importante é que
nós tenhamos essa rede de parceiros articulada para que possamos imediatamente responder,
para impedir que a fase seguinte aconteça”, explicou.
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