O 14º Encontrão da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão pautou violência, corpos e territórios livres
14º Encontrão da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do MA, realizado na comunidade quilombola Bica - Pirapemas (MA) - Foto| Cláudia Pereira - APC |
Por Cláudia Pereira | Articulação das Pastorais do Campo
“Não estamos só, não lutamos sozinhos e precisamos denunciar essa violência”, ecoou a voz de uma das lideranças quilombola ao abrir a plenária do 14º Encontrão da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão. A frase dita tem mais potência que os amplificadores de som que permitiu com que a frase ressoasse por toda a comunidade. A frase é também uma afirmação da violência que milhares de famílias das áreas rurais e urbanas enfrentam no estado do Maranhão.
O 14º Encontrão da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, foi realizado entre os dias 20 e 25 de julho de 2023, em Pirapemas, que fica a 200 km da capital, São Luís. Sob uma cobertura de palhas, ao lado dos pés da mãe Palmeira babaçu, cercas de arame farpado e a linha férrea Transnordestina, os povos refletiram o tema do encontro: “Com corpos e territórios livres, tecemos o bem viver”
Nestes dias as vozes dos povos, o som do tambor e do maracá reverberou entre as árvores e palmeiras de forma clara e esperançosa. Quilombolas, indígenas, camponeses, pescadores, ribeirinhos, quebradeiras de coco babaçu e extrativistas, partilharam seus exemplos de luta para preservar o meio ambiente e manter os recursos naturais da terra que estão ameaçados e comprometem o futuro das próximas gerações. Debateram o significado de liberdade que perpassa os corpos e transcende ao sagrado. O encontro foi acolhido pela comunidade Bica, Território Quilombola Aldeia Velha. No chão sagrado da comunidade Bica os povos viveram momentos de alegrias, ancestralidade e espiritualidade em conexão com a mãe terra. Abordaram a violência contra corpos-territórios, que envolve o machismo, sexismo, a violação e desrespeito contra todos os gêneros. Foi também dias para denunciar as violações contra o meio ambiente.
“Hoje me sinto muito feliz com todos vocês aqui em nosso território lutando pelos nossos direitos”
“É uma alegria muito grande para nós do território ao ver todos vocês aqui neste encontro. A Bica é o nosso olho d’água, é herança dos nossos antepassados, por isso o nosso cuidado com este espaço e todo o nosso território Aldeia Velha. A bica é como a nossa mãe, é desta fonte de água que bebemos, tomamos banho, lavamos nossas roupas e regamos as nossas plantas. É uma obra da natureza que é a nossa maior riqueza. Por um tempo nós andávamos desmotivados até encontrar os companheiros de luta, hoje me sinto muito feliz com todos vocês aqui em nosso território lutando pelos nossos direitos”. Expressou Maria Antônia, moradora do território, visivelmente emocionada diante de centenas de pessoas que participavam do encontro sob a cobertura improvisada feita de palhas de palmeira e o colorido das redes.
As comunidades tradicionais do estado do Maranhão têm vivido uma espécie de asfixiamento, principalmente os povos que vivem próximos aos grandes empreendimentos que envolvem indústrias e siderúrgicas. As comunidades rurais têm sofrido as consequências do agronegócio que envenenam as águas e os alimentos dos camponeses, as comunidades de pescadores estão sendo encurraladas pelos projetos tidos como sustentáveis que destroem o bioma. O desmatamento da floresta e queimadas nos territórios indígenas que nos últimos quatros anos tem causado duras consequências.
Toda
essa violência é responsabilizada pelo governo do estado do Maranhão. Vale
afirmar que o Estado brasileiro possui um conjunto de leis que garante direitos
para os povos e comunidades tradicionais, sobretudo quando se refere aos
direitos territoriais. São obrigações constitucionais e os órgãos públicos
estaduais têm violado os direitos humanos e descumprido a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT). No encontro da Teia, os Povos e
Comunidades Tradicionais partilharam os enfrentamentos e denunciaram as
violências. O território Quilombola Aldeia Velha, local do encontro, é um dos
territórios que vive as constantes ameaças contra as comunidades e a floresta.
Imagem - drone - Gilberto Lima - CPP
Território quilombola Aldeia Velha
A comunidade Bica, local do encontro, reflete um pouco deste sufocamento que os povos tradicionais do estado do Maranhão vivem diariamente. A área do encontro foi realizada entre a linha férrea e a cerca de arame farpado da fazenda. A linha férrea que passa em frente a comunidade Bica, durante os dias de encontro se observou que o trem passava com seus inúmeros vagões ao menos duas vezes ao dia. Além da linha passar praticamente dentro da comunidade, não tem segurança, a estrada de ferro também não oferece nenhum serviço de mobilidade aos municípios, uma vez que seu destino é o porto de Itaqui na capital São Luís. A única função da linha é escoar o minério do estado, enquanto a população tem dificuldades de mobilidade. Do outro lado da cerca de arame se vê a imensidão da terra que pertence à comunidade nas mãos do fazendeiro. Exemplo real que expressa os enfrentamentos dos povos de norte a sul do estado. Um estado geograficamente rico que está perdendo a biodiversidade. Durante o trajeto para chegar ao local do encontro se observa manguezais, cerrado, caatinga e as palmeiras de coco babaçu. Nesse mesmo trajeto também se vê a monocultura do eucalipto avançando e a soja no espaço que antes era mata nativa.
“Aqui em nosso território quilombola Aldeia Velha, nós sofremos repressão do fazendeiro a todo momento. Nós estamos encurralados aqui pelas cercas e sofremos várias ameaças. Não podemos pescar, não podemos colher o coco babaçu, não podemos pegar uma palha para cobrir nossa casinha e não podemos plantar a nossa roça”. Partilhou o lavrador Deusdete Martins que já sofreu ameaças com arma de fogo dentro da sua comunidade.
Entre as ações violentas sofridas no território, as famílias relataram o envenenamento dos animais domésticos, destruição da colheita do coco babaçu que também é fonte de alimento e sobrevivência da comunidade e destruição de plantio de roça. Não bastasse a perseguição, os moradores enfrentam o racismo, principalmente quando precisam de atendimento dos serviços públicos municipais.
“Em nosso território temos uma comunidade onde as cercas do fazendeiro passam rente a casa das pessoas, as palmeiras, a água e a terra estão com os fazendeiros e muitas famílias sobrevivem com auxílio social. O gado invadiu e comeu as nossas roças, derrubaram árvores e acusaram as comunidades. As famílias dependem do Bolsa Família e isso para mim é também uma forma de despejo. A comunidade que menos sofre repressão e ainda assim é perseguida é a comunidade Bica, aqui onde estamos, porque tivemos ajuda para conquistar este pedaço de terra para a comunidade”. Afirma José Patrício do território Aldeia Velha.
O território Aldeia Velha possui 11 comunidades, situado no município de Pirapemas. As famílias do território são filhas, filhos, netos e bisnetos de remanescentes de quilombos que herdaram as terras. O histórico do território é atrelado a Guerra da Balaiada no século dezoito, quando o Maranhão era província e os escravos eram maioria na batalha. Desde 2011 as comunidades travam a luta pela regularização do território e enfrentamento dos fazendeiros. Com apoio das pastorais do campo e dos movimentos, tem fortalecido a caminhada e conquistado alguns passos importantes. A violência ficou acirrada no ano de 2017 quando as famílias tiveram suas roças queimadas, uma forma de repressão após o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), iniciar o mapeamento para demarcação das terras. Nos anos 2000 a comunidade Bica que já sofria grande repressão do fazendeiro, mobilizou junto aos movimentos e pastorais do campo para denunciar as violências, em 2004 com articulação da diocese de Coroatá a comunidade Bica teve o direito à posse da terra. A área foi comprada e doada para a comunidade.
“A
situação do território é grave, aqui temos casas que não possuem quintal, não
se pode criar animais para o nosso consumo porque nada pode ultrapassar o
limite da cerca do fazendeiro. Por isso, este encontro da teia que acontece
aqui é importante para fortalecer a nossa luta pelo direito de viver em
liberdade”. Diz Lucimar Souza do território Aldeia Velha.
Comunidade Bica - Território Aldeia Velha. Foto| Cláudia Pereira |
Denúncias as violações ambientais e de direitos
Nestes dias de Encontrão da Teia os povos analisaram a conjuntura sociopolítica de seus territórios e do estado do Maranhão diante as denúncias de violência institucional, crimes ambientais, o avanço do agronegócio contra as comunidades, os empreendimentos sustentáveis que destrói o bioma e viola os direitos dos povos. Entre as ações violentas, os povos alertam para a contaminação das águas por agrotóxicos e o correntão que arrasta e destrói a mata nativa.
Entre as partilhas houve a exposição de um enfrentamento violento contra uma comunidade de trabalhadores rurais no município de Açailândia, oeste do estado. A comunidade de camponeses composta por aproximadamente 700 famílias foi surpreendida na noite de (06/06/2023) às 23h com uma ordem de reintegração de posse e todo o aparato da polícia militar. A ação truculenta e ilegal parte da empresa Suzano Papel Celulose que afirma ser proprietária, mas a própria justiça do estado reconheceu que a área é pertencente a união. A empresa Suzano também alega que a área ocupada é reserva ambiental.
Nos últimos anos a ação dos “correntões”, método que arranca a mata nativa em questões de minutos, é um dos crimes ambientais mais denunciados, em especial nas áreas do cerrado maranhense. Uma corrente gigantesca é fixada em dois tratores e leva tudo que tem pela frente. “Os correntões é uma das maiores tragédias que existe. O próprio governo autoriza esse tipo de ação que destrói a natureza, vidas, casas e comunidades inteiras. O mesmo governo que posta nas redes sociais que faz preservação, a exemplo do Maranhão Verde, é o mesmo que devasta”. Afirma Naildo Braga que integra o movimento quilombola MOQUIBOM.
“Esse veneno já está no lençol freático de outras comunidades”
O avanço do agronegócio no estado com a produção da soja, além de invadir áreas das comunidades tradicionais, tem contaminado as águas com agrotóxicos. O território quilombola de Cocalinho, situado no município de Parnarama, região norte, desde 2018 tem denunciado o alto índice dos agrotóxicos nas nascentes da comunidade. O território se articulou e com apoio das pastorais do campo denunciou ao Tribunal Internacional dos Povos. Após a denúncia, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), realizou na época a primeira coleta da água que comprovou a presença dos agrotóxicos em 56 poços. A pesquisa mais recente realizada no primeiro semestre deste ano de 2023 identificou em um dos poços, 09 tipos de venenos presentem na água das comunidades de Cocalinho. O território que já sofre as consequências deixada pela Suzano Papéis Celulose. A empresa saiu da região em 2018 e deixou para trás o solo danificado com a monocultura de eucalipto que contribuiu com a seca dos lagos e igarapés. Atualmente as comunidades do território enfrentam as ações do agronegócio.
“Nesta segunda coleta das águas que abastecem as nossas comunidades do território, a pesquisa identificou em um dos poços, 09 tipos de venenos, entre eles o glifosato. Tá sendo difícil para o nosso território porque nós usamos essa água pra tudo, inclusive para beber. Esse veneno já está no lençol freático de outras comunidades. As pessoas têm adoecido com frequência e inclusive houve um companheiro que faleceu com câncer de pele. As pessoas sentem dores de cabeça, irritação nos olhos e na garganta”. Relata Raimunda Nepomuceno do território de Cocalinho.
A jovem Pryh’puc da Terra Indígena Governador, que fica ao sul do estado do Maranhão, conta que os povos da comunidade têm sofrido com as invasões dos madeireiros que desmatam a floresta e criminaliza os povos originários. “A nossa área tem 42 mil hectares e nos últimos dois anos, os madeireiros têm invadido as nossas terras, destruindo as reservas e dizendo que a área pertence à união. Com isso, as nossas nascentes e rios estão secando. São pessoas de fora que atua na exploração de madeira de forma ilegal e agem sempre no período da noite. Temos vivenciado isso com frequência e já sofremos ameaças Encaminhamos as denúncias, mas até o momento não temos uma resposta do estado. Nos articulamos com um grupo de mulheres das comunidades e estamos fazendo plantações de sementes nas áreas degradadas”. Partilhou a indígena da etnia Gavião.
Diante aos relatos partilhados em plenária dos quilombolas, indígenas, pescadores, camponeses e quebradeiras de coco, percebe-se que os autores dos crimes ambientais têm a impunidade como garantia. Os crimes cometidos pelas siderúrgicas, mineradoras, indústrias de papel e o agronegócio no estado do Maranhão ocorrem há décadas e com anuência do governo do estado. As empresas desmatam, queimam, poluem, matam os lenções freáticos, desmatam áreas de preservação e criminalizam as comunidades tradicionais. Não bastasse tudo isso as representações dos órgãos, a exemplo da Defensoria Pública e a Secretária do Meio Ambiente demonstra indiferença à realidade dos mais pobres.
Toda
essa violência partilhada e vivenciada no Encontrão da Teia dos Povos e
Comunidades Tradicionais é confirmada através do relatório de
conflitos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que aponta a escalada de
ocorrências por conflitos de terra no estado do Maranhão no ano de 2022.
Outro documento que também confirma essa violência é o relatório divulgado
este ano pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que aponta nos anos de 2020 a 2022, mais de 10
lideranças do campo foram assassinadas e mais de 30 mil famílias sofreram
ameaças nas comunidades tradicionais do estado. Recente relatório anual do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), demonstra que os povos indígenas no
estado do Maranhão sofreram violações que resultaram em perseguições e mortes.
Em 2022 seis indígenas foram de assassinatos, o que comprova que a violência
contra os povos indígenas é cada vez mais acentuada.
14º Encontrão da Teia dos Povos (MA) - Foto| Cláudia Pereira - APC |
Diante das dores e enfrentamentos a esperança é derrubar as cercas invisíveis. Um dos momentos fortes e muito importante no encontro da Teia foi a temática dos corpos livres. Os povos pautaram a violência contra os corpos, a violência contra as mulheres, as pautas sobre LGBTQIAPN+fobia e racismo. Momento importante de escuta e sentimento de libertação. As partilhas sobre a violência contra os corpos que lutam pela terra e defesa dos biomas e todas as formas de vida. Foram pontuados os processos de repressão e violência dentro dos territórios e como essa violência perpassa as vidas na individualidade e no coletivo das comunidades tradicionais. As partilhas são fundamentais para retomar a luta nas comunidades.
O 14º Encontrão da Teia do Maranhão reafirma na prática a
autonomia dos povos, vivenciada através do autocuidado com os corpos e a casa
comum, a soberania alimentar que permitiu refeições saudáveis para
aproximadamente mil pessoas durante os cinco dias de encontro. A coletividade é
praticada desde a acolhida até as diversas pautas de luta. A farmácia viva com
chás, raízes e os cuidados especiais é mais um exemplo da autossuficiência,
sustentabilidade e autonomia dos povos e comunidades tradicionais do Maranhão.
Povos guardiões das florestas e das águas em defesa da vida e da terra livre.
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