Foto: Jossiney Evangelista. |
De um lado, pessoas que vivem do que a
terra dá, criando gado para subsistência; do outro, gente que quer terra
para juntar mais dinheiro. Entenda o que está em jogo nesta terra
disputada pelos retireiros do Araguaia e pelos grileiros.
Por Lilian Brandt
No Araguaia a sazonalidade é bem
marcada. Tem o tempo da seca, quando o rio forma praias, e tem o tempo
das chuvas, quando o rio fica cheio. Estamos todos nos relacionando
diariamente com a natureza. A mudança do clima é sentida no corpo, na
rotina e na alimentação. Cada mês é um tipo de peixe diferente, uma
técnica de pesca específica. Cada mês se planta ou se colhe determinada
coisa. Cada época tem seu lazer: acampar nas praias, acampar nos lagos,
ir para esse ou aquele retiro. Aqui, quem não tem um retiro, vai passar o
final de semana no retiro do amigo.
Para quem não é da região, vale
explicar: “retiro” é uma casinha simples, bem longe da cidade, nas
proximidades do rio Araguaia ou de um lago que a ele se conecta. Um
retiro tem piquete para tratar de uma vaquinha leiteira, curral e
cisterna. Alguns poucos ainda têm galinhas, uma roça e até uma horta.
Sendo assim, são chamados de “retireiros” os criadores de gado que usam
as áreas de várzea do rio Araguaia durante as secas e, quando o rio
sobe, retiram os animais para terras mais elevadas.
Um lugar que tenha capim verde durante a
seca, provavelmente alaga durante o período da chuva. São as áreas de
várzea, aqui conhecidas como “varjão”. Da mesma forma, um lugar alto,
longe do risco de inundação, ideal para deixar animais na época da
cheia, é um lugar onde o pasto não se mantém na época da seca. Aqui
conhecemos essas áreas como “monchão”. Essa característica geográfica da
região é o que faz também que a prática do arrendamento de terra para
criação de gado seja tão comum.
Retiro às margens do rio. Foto: Josssiney Evangelista Retireiros: lidando com gado em terras alagáveis
O Vale do Araguaia tem muitos
retireiros, mas um grupo tem se destacado por sua luta pelo território.
No município de Luciara, uma pequena cidade de 2.224 habitantes, os
retireiros do Araguaia vivem da criação coletiva de gado na beira do
Araguaia, numa região chamada de Mato Verdinho. Cada retireiro tem sua
história. Os primeiros chegaram há mais de um século e outros foram
vindo. A família de Jossiney Evangelista, por exemplo, chegou há 60
anos.
Jossiney, além de retireiro, é vereador.
Ele explica que nos retiros o gado é criado solto. São utilizadas
pastagens naturais do cerrado, por isso eles conhecem diversos tipos de
capins, como o palha-fina, o canarana e o cebola. Jossiney conta que “se
você plantar braquiária ou outro tipo de capim, acaba mexendo com o
ecossistema. Lá tem muita biodiversidade, e a vantagem é que a gente vai
tentando sempre seguir a natureza”.
Tocando gado em terras alagáveis. Foto: Jossiney Evangelista.
Os retireiros preservam a natureza sem esforço, pois esse é o seu modo
de vida há gerações. Mas tudo em volta está mudando, e esse modo de vida
está cada vez mais ameaçado. A grilagem de terra é uma prática cada vez
mais comum, as cercas estão aumentando e os impactos no ambiente já são
sentidos. A saída encontrada pelos retireiros é a criação da Reserva de
Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mato Verdinho. A intenção é que, com a
RDS, a terra continue sendo usada coletivamente, impedindo o avanço da
grilagem de terra e preservando as margens do rio Araguaia.
Reserva de Desenvolvimento Sustentável – o que é e como funciona?
Até um tempo atrás se pensava que para
conservar um ambiente natural era preciso tirar todas as pessoas que
viviam nele. Esquecia-se que todo o território brasileiro era antes
habitado pelos indígenas e que a natureza não era “intocada”, muito pelo
contrário, a natureza sempre foi manejada. Percebeu-se então que, não
só os índios, mas também muitas populações tradicionais desempenham um
papel fundamental na proteção da natureza, bem como na manutenção da
diversidade biológica.
A partir dessa percepção, se criou no
Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) a categoria Reserva
de Desenvolvimento Sustentável, que tem como principal característica a
integração de pessoas com a conservação do ambiente. É o reconhecimento
do Estado de que as pessoas que viveram em determinado território
desenvolveram, ao longo de gerações, uma série de conhecimentos para
utilizar os recursos naturais sem esgotá-los, ou seja, de modo
sustentável.
Os territórios das RDS são de domínio
público, entendendo, portanto, que aquela população desempenha um papel
importante para toda a nação, e por isso, tem por direito viver daquela
terra. A população deve ser a responsável pela gestão da área,
participando das atividades de manejo dos recursos naturais e fazendo a
vigilância da reserva.
Jossiney conta que os retireiros do
Araguaia entraram com o pedido da criação da RDS em 2003. De lá para cá,
segundo ele, “a coisa ficou solta”. “A gente luta pela RDS para evitar a
entrada do agronegócio que acaba com tudo. O modelo de agricultura que a
gente vê hoje limpa a terra e tira tudo, matando muitos animais e
plantas nativas”, afirma. A RDS Mato Verdinho, se criada, estaria
localizada em terras alagáveis, que são Áreas de Preservação Permanente
(APP).
Áreas de Preservação Permanente e o interesse da União: a Portaria da SPU
As áreas alagáveis de um rio são consideradas Áreas de Preservação Permanente (APP), que de acordo com o Código Florestal (Lei nº12.651/12)
são áreas naturais intocáveis, com rígidos limites de exploração. As
APPs se destinam a conservar solos e, principalmente, as matas ciliares,
protegendo os rios e reservatórios de assoreamentos, garantindo a
preservação da vida aquática.
Somente órgãos ambientais podem abrir
exceção à restrição e autorizar o uso de uma APP (art. 8º da Lei
12.651/12). A presença dos retireiros do Araguaia nestas áreas alagáveis
seria, portanto, uma exceção, só permitida porque o Estado reconhece
que seu modo de vida é sustentável. Em 26 de novembro de 2014 foi
publicada a Portaria nº 294 da Secretaria de Patrimônio da União (SPU),
declarando as áreas de várzea do rio Araguaia como terras de interesse
público da União.
O Procurador Wilson Rocha de Assis, da
Procuradoria da República no Município de Barra do Garças, defende que
esta é uma definição legítima. Ele afirma que “não se trata de
desapropriação de terras particulares, de tomada de terra de ninguém,
mas tão somente da formalização e da delimitação de uma área que por lei
pertence à União e que vinha sendo ocupada de uma forma irregular,
através da grilagem de terras, e invariavelmente expulsando populações
que já estavam nessa região há décadas ou séculos”.
Com 1.627.686 hectares, a área indicada
pela Portaria nº294 abrange os municípios mato-grossenses de Luciara,
Canabrava do Norte, Novo Santo Antônio, Porto Alegre do Norte, Santa
Terezinha e São Félix do Araguaia, e os municípios tocantinenses Formoso
do Araguaia, Lagoa da Confusão e Pium. Apesar de ser apenas uma
formalização já prevista na legislação, a iniciativa gerou polêmica e os
latifundiários rapidamente se organizaram. Foram propagados rumores de
que toda a área seria “Reserva Indígena” (sic), que os moradores seriam
expulsos dali e que o preço das terras na região havia despencado.
No dia 30 de janeiro de 2015, a Portaria
nº 294/2014 foi revogada, sendo substituída pela Portaria nº10/2015,
que instituiu um Grupo de Trabalho para realizar um estudo técnico das
áreas então desapropriadas a que fazia referência, a fim de analisar sua
situação fundiária.
Com a regularização fundiária na região,
os grileiros, aqueles que se apropriaram ilegalmente de grandes áreas
de terras devolutas através de documentos falsos, teriam suas fazendas
passíveis de desapropriação. A grilagem de terras geralmente é feita
para a aquisição de financiamentos bancários dando a terra como
garantia. Os produtores de soja estariam também interessados em adquirir
quotas de Reserva Legal, já que o novo Código Florestal permite que
sejam compradas reservas fora da propriedade na qual ocorre o
desmatamento, desde que seja no mesmo bioma.
Com a expansão do agronegócio na região,
as terras estão cada vez mais valorizadas. A regularização fundiária,
prevista na Portaria nº294/2015, impediria a compra e venda das áreas de
várzea do Araguaia, e este é o maior temor dos poderosos da região. Já
os posseiros, pessoas que se apropriam de terra para morar e trabalhar,
não seriam prejudicados. Do mesmo modo, estariam resguardados os
direitos das comunidades tradicionais que ali vivem, como pescadores, os
indígenas Kanela do Araguaia e os retireiros do Araguaia.
Para Jossiney, a população urbana de
Luciara também se beneficiaria com a preservação da área, pois, segundo
ele, a maioria dos moradores são ribeirinhos, vivem da pesca. “A criação
da RDS é uma forma de conservar esse modo de vida. A fiscalização
poderia diminuir ou até extinguir a prática da pesca predatória, porque a
gente só respeita um local se tem alguém”. E completa, “Se tem uma casa
de ‘fulano de tal’, eu não vou entrar. Mas se continuar do jeito que
está, não tem sentido a gente ficar lá dentro. O retireiro sem a
natureza preservada nem vale a pena”.
Quem tem medo da regularização fundiária? O latifúndio, a mentira e a violência
Não é novidade: a grilagem corre solta
no Araguaia. O interesse pelas terras é tanto que a violência se torna
uma prática comum na busca de mais lucro. Luciara viveu dias violentos
em 2013, com diversos atentados cometidos contra os retireiros do
Araguaia. Foram queimadas duas casas, tentaram atear fogo em um veículo,
pneus foram queimados em frente a residências e foram proferidas
ameaças de morte contra diversos membros da comunidade.
A casa de uma liderança religiosa que
apoia a causa dos retireiros foi alvejada por tiros e um grupo de
pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) foi ameaçado
e impedido de entrar na cidade. A MT-100, único acesso terrestre à
Luciara foi obstruída, máquinas foram colocadas na pista de pouso do
aeroporto e até mesmo o acesso ao lago e beira de rio onde ficam os
retireiros foi fechado.
Jossiney era o proprietário de uma das
casas queimadas. Dois anos após o crime, ele ainda não superou os
momentos de horror. “Até hoje eu lembro do pessoal querendo me linchar,
foi muito violento. Eu sou representante do povo, sou vereador, mas
muitas vezes eu deixo de ir em algum lugar para resguardar minha vida.
Agora que eu estou voltando ao meu retiro normalmente, agora que eu
estou conseguindo refazer a casa”, desabafa.
Para ele, a situação permanece tensa,
ainda que as ameaças sejam veladas. “Não tem ameaças diretas, mas a
posição de quem é contra continua sendo a mesma. O silencio é pior,
porque você não sabe quem é a pessoa que vai fazer alguma coisa ruim”,
afirma. Ele defende que a criação da RDS é a única saída para os
retireiros. “Todo mundo tem o direito de ser contra ou a favor, mas qual
é a proposta que eles tem? É só ser contra e pronto? Se houvesse outra
alternativa para a gente manter nosso modo de vida, eu iria abraçar a
causa”, afirma o vereador.
Em maio de 2014, oito integrantes da
Associação dos Produtores Rurais (Aprorurais) de Luciara foram
denunciados pelo Ministério Público Federal de Barra do Garças pelos
crimes de associação criminosa, sequestro, cárcere privado e ameaça
contra a comunidade tradicional retireiros do Araguaia, professores e
estudantes da UFMT. A investigação, conduzida pela polícia e pelo
Ministério Público Federal, comprovou que as manifestações contra a
comunidade tradicional da região do rio Araguaia foram orquestrados,
coordenados, financiados e estimulados pela associação criminosa da qual
fazem parte os denunciados.
De acordo com o Procurador Wilson Rocha
de Assis, o grupo usava a desinformação e controle político para tentar
colocar a população da cidade contra os retireiros. “Esses setores têm
afirmado que é um ato de desapropriação, que o poder público vai tomar
as áreas e vai expulsar as pessoas que residem na região, o que não é
verdade, especialmente considerando que é uma região que tem uma
ocupação antiga. A boa fé dessas pessoas tem que ser contemplada na
medida que a lei autorize”, afirmou.
Mesmo sendo mentira, a maioria do povo
acreditou. Segundo Jossiney, esta campanha de desinformação enfraqueceu a
luta pelo território. “Pregaram um terrorismo na cabeça das pessoas com
informação falsa. Eu sou o único vereador que apoia a criação da RDS,
os outros são declarados contra e até o prefeito se declara contra”,
lamentou.
Cercas de arame e limitações políticas
No dia 17 de agosto de 2015, uma
audiência pública realizada na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, em
Cuiabá, debateu sobre as Portarias nº 10/2015 e nº 294/2014 da SPU. De
acordo com o Procurador Wilson, este foi um momento de democratização do
debate. Segundo ele, “o Ministério Público e a SPU foram muito acusados
de não estarem ouvindo outros setores, especialmente o setor produtivo.
Agora esse argumento não pode mais ser usado. O debate foi praticamente
dominado pelo setor ruralista, que está muito bem representado na
Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso”.
Não podia ser diferente. A Audiência
Pública foi realizada pela Comissão de Agropecuária, Desenvolvimento
Florestal e Agrário e Regulamentação Fundiária, e contou com a presença
de Sindicatos Rurais dos municípios afetados, prefeitos, vereadores e
apenas um representante indígena e um retireiro. “O que a gente ouviu
foi a oposição desses setores em garantir os direitos das comunidades
tradicionais e dos povos indígenas”, disse o Procurador. “Apesar dessa
oposição, a gente conseguiu explicar a legislação, que favorece os povos
indígenas e as comunidades tradicionais. O Ministério Público e a SPU
deram todos os esclarecimentos que foram solicitados”, afirmou Wilson.
A recomendação do Ministério Público é
que se faça primeiro a regularização dos territórios dos povos indígenas
e das comunidades tradicionais. A prioridade dada aos povos indígenas e
comunidades tradicionais não parte de um interesse ideológico. De
acordo com o Procurador Wilson, “a lei que estabelece como se faz
regularização fundiária na Amazônia Legal, a Constituição e os tratados
internacionais deixam clara a necessidade de respeitar as comunidades
tradicionais”. Ele ainda afirma: “eu não posso ser avesso à propriedade
privada ou ao agronegócio, mas o que a gente defende é que seja
observada essa ordem, primeiro a garantia dos territórios tradicionais e
depois as propriedades privadas”.
Enquanto agem nas esferas de decisões
políticas, os fazendeiros também intervêm na área reivindicada pelos
retireiros. O procurador afirma que o Ministério Público tem recebido
diversos relatos sobre novas cercas e atos de invasão de terras
públicas. “Estamos tomando todas as providências para que esses atos
sejam processados e punidos na forma da lei.”, garante.
Após anos de luta, Jossiney começa a
perder as esperanças. “Já tem mais de dez anos que a gente vem esperando
acontecer a RDS e nada. O poder de articulação dos fazendeiros é
grande. Sempre o mais fraco é o que termina perdendo”, lamenta.
O medo também afeta a esperança. Após as
ameaças e cenas de terror vividas, Jossiney teme pelo futuro. “Não é só
aqui na região, em vários lugares quem lutou por uma causa acabou
morrendo e só viu as coisas acontecendo depois da morte. Eu queria ver
em vida”, desabafa. “A gente só tem uma vida. Quem vivencia uma cena de
terror, mesmo depois de algum tempo, as imagens não se apagam da mente. A
gente pode se acostumar, mas não quer mais vivenciar aquilo”, conclui.A regularização fundiária é o caminho
para construir a segurança jurídica na região e, consequentemente, a
segurança das pessoas que lutam pelo direito legítimo ao território.
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